LIVRO: A MÚSICA COMO INSTRUMENTO DE INCLUSÃO E INVENÇÃO SOCIAL- BAIXE

abril 06, 2017

 

A melhor forma de tentar mudar um Preconceito é elaborar um novo conceito.

Música, direito, psicologia, pedagogia e fisioterapia em um trabalho acerca da inclusão das pessoas com Down!!!

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Segue introdução feita pelo mestre Bernardo G. B. Nogueira e por mim.

Não existe folha em branco
Leonardo Gontijo
Bernardo G.B. Nogueira

Todas as vezes que a página em branco tilinta à frente dos meus olhos verdadeiramente sinto como se uma alteridade estivesse convocando, chamando e mais importante, à espera por existir. Dessa forma, parece-nos, não há verdadeiramente folhas em branco. Por mais que seja evidente o contrário, ou seja, há folhas em branco, em contato com os olhos, à mão, a folha em branco não mais pode ser considerada uma folha em branco. O toque, o tato, o olhar que deita sobre a folha toda a angústia da responsabilidade pelo que virá a ser escrito, toda a necessidade da escrita, a vida que ela traz, que ela é impelida a fazer nascer, a folha, nada mais é do de que um clamor pelo outro e pela outra, em melhores palavras, um clamor do outro e da outra. Não há dimensão racional a priori, senão aquela que é inaugurada pela face por detrás da folha em branco. Há, portanto, toda uma herança que reclama sua chegada. Toda uma sorte de distâncias que diminuem quando se tornam palavras escritas. A folha em branco é a voz que vem, que assombra as teclas, que lhes chamam à vida e que, portanto, instauram vida. O nascimento do texto é um ato de hospitalidade .
Por essa via de raciocínio, podemos argumentar desde já que essa alteridade que nos constitui e que nos permite à escrita é ela mesma condição de nossa possibilidade de existir, fim, início e meio, dentro da qual nos colocamos enquanto escrevedores, mas que a mais das vezes, não está sob nossa opressora função de conhecedores. O sentido impresso nas palavras que sujam a folha em branco não se dá, senão, pela hipótese que aqueloutro e aqueloutra que a assombram permitem. Qualquer ato de escrita só o é se um é ato de escrita pelo outro ou pela outra. Ali mesmo onde a arrogância racional nos impulsiona a manifestarmos nossa egologia, encerra-se enquanto seu próprio epitáfio. O eu se esboroa quando não percebe que só o é pelo outro e pela outra. Não estamos aqui a anunciar de maneira profética, como já o fizeram, o fim do escritor ou da escritora, a morte do autor ou da autora, ao contrário, estamos aqui a dizer da imperiosa necessidade de percepção que um ou uma, só está, por intermédio, pelas mãos do outro e da outra, não existe escrever sem que haja assombro. Daí a necessidade, outra vez, de reconhecermos que o local de existência da escrita dá-nos o outro e dá-nos a outra. A folha em branco como a face do impossível. Talvez seja aqui que gostaríamos de chegar. Ora, assim como nos permite reconhecer Derrida, a invenção, só é invenção do outro e da outra, e dessa ordem de ser que a cada instante inventa, nasce a questão impossível mesmo dessa ideia. Uma vez que há invenção, ali onde ela nasce, necessariamente já não há mais que falar em invenção. Vez que ela já apareceu.

Iremos abandonar, por ora, a questão da folha em branco, apesar de necessariamente ser um abandono impossível, sobretudo, pelo fato de que quando o cursor mudar de página, será novamente uma folha em branco a nos espreitar. Mesmo tendo afirmado logo acima que a folha em branco não existe. Quando há um ano atrás pensamos na concepção de um projeto de iniciação científica que teria como fio condutor a música, e a música de uma pessoa com síndrome de down, tivemos a exata dimensão da responsabilidade e da impossibilidade de dizermos da folha em branco, ora, dentro da academia, dentro das universidade, uma pessoa com síndrome de down seria desde sempre uma folha em branco. Um receptáculo no qual todas as nossas opressões racionais pudessem ser depositadas, contudo, ao revés dessa dimensão, quisermos expor aquilo que iniciamos por contar, a ideia de que aquele e aquela que vem, não vêm da maneira, da forma e com as dimensões que pretendemos. Neste sentido, a pessoa com síndrome de down pareada com uma ideia de hospitalidade incondicional é uma das maneiras de evidenciar que a folha em branco, o outro, a outra, nunca são, deveriam ser, de fato, uma folha em branco. Não há folha em branco. Não há alteridade em branco.

Daí que temos alguns elementos dentro dessa reflexão que precisam ser trazidos. Fomos instados a pensar ou em melhores palavras, fomos tomados pela responsabilidade infinita de que nos fala Lévinas, quando encontramos pela primeira vez o Eduardo Gontijo, o Dudu do Cavaco. Bom, ali, parece-nos, depois de alguns anos lendo e passando pelo pensamento do impossível que nos informam tanto Lévinas quanto Derrida, pudemos perceber a que estes autores aludiam quando diziam do outro como um evento criador de tempo, ora, dentro do pensamento destes autores, aquele e aquela que vem criam tempo, inventam, o que nos coloca absolutamente responsáveis e ao mesmo tempo, devedores, vez que sem o outro, sem a outra, não há sequer tempo – e se estamos no tempo…

Através da música do Dudu pudemos, portanto, acessar e ver luzir essa alteridade de maneira inolvidável. Fomos conduzidos pelas canções, pelos gestos e pela novidade, para um tempo que a razão modeladora da ciência não alcança. O Dudu, por força mesmo de sua condição de pessoa com síndrome de down, nos coloca em condições de observação acerca da inediticidade do encontro. Aquilo que se chama filosoficamente evento, dá-nos o Dudu, a cada encontro, que nunca é reencontro, posto que novo. Mais uma vez, não há folha em branco. O Dudu evidencia que a folha em branco, diferente da evidência de sua brancura, traz sempre, por detrás, pelas suas bordas, toda a sorte que o desconhecido pode nos proporcionar. O Dudu fora então aquele elemento inaugurador que conduz a uma dimensão totalmente nova, por assim dizer, absurda, exatamente pela força de sua inventividade. O outro e a outra, assim como a relação com a folha em branco, são experiências do impossível, e por isso mesmo, as únicas possíveis enquanto eventos, inauguração, ética e hospitalidade.

Dito isto imaginamos então um projeto no qual pudéssemos mostrar que a questão da chamada pessoa com deficiência, entremeada pela música, nos permitiria reconhecer a própria dimensão de ética da alteridade em Lévinas, bem como, como a hospitalidade incondicional de Derrida, que são elementos constantes quando estamos em contato com estas pessoas, e em nosso caso, especialmente, o Dudu do Cavaco – primeira pessoa com síndrome de down do país a gravar um cd e dvd. Assim, a grande questão seria como dar uma face para uma pesquisa que é atravessada pela dimensão da arte e pela dimensão de uma alteridade que normalmente é enquadrada em ditames científicos. Essa questão foi respondida quando vislumbramos uma pesquisa multidisciplinar que contou com pessoas de diversas áreas, a saber, fisioterapia, direito, psicologia e pedagogia, portanto, pela via da diversidade, que é o local em que acreditamos morar qualquer hipótese de ciência, ora, não há ciência senão ciência do outro e da outra, conseguimos entrelaçar, em forma de uma dança, entanto, canção, uma pesquisa que não estivesse presa aos ditames modernos de pesquisa nos quais cientista e objeto estivessem dissociados. A face imperiosa que atravessou a pesquisa foi a necessidade de estarmos todos os envolvidos, entrelaçados pelo tema, porém, ao mesmo tempo, com o ouvido aberto para a escuta daquele e daquela que vem. Por isso mesmo entendemos que a música seria um local privilegiado, ora, dentro dos acordes entoados pelo Dudu não haveria barreira em relação à inserção – dentro de sua arte tornamo-nos todos iguais. E esse apelo por inserção, junto com uma ideia de invenção, posto que o outro e a outra são invenções, foram os verbos pelos quais procuramos pautar nossa pesquisa. Não iremos apresentar os textos, vez que seus autores e autoras fundam de per si um tempo próprio, que nos obriga a respeitá-los, apresentar seria furtar ao leitor o efeito de novidade que o outro e a outra nos obrigam. Porém, importa dizer que desde a dança e os movimentos, até a sublimação, passando pelas inteligências múltiplas e por análises do próprio estatuto que regulamenta legalmente a vida das pessoas com deficiência, pudemos perceber que o diálogo entre distintas formas de saber é o a-caminho para que possamos deixar o outro passar, feito novidade que é, sem que estejamos desde sempre com nosso julgamento racional pronto para captura-lo e torna-lo apenas um novo eu, que se repete, enquanto a diferença, a novidade, se esvai pelas águas de nossa arrogância científica. Não há pesquisa senão pesquisa do outro, da outra.

Essa tarefa, portanto, não poderia percorrer outro caminho senão o da escuta, a todo o tempo estivemos mais escutantes que falantes, menos precisos e, por isso mesmo, mais preciosos, uma vez que a cada descoberta dos efeitos pedagógicos, terapêuticos, de mobilidade e mesmo jurídicos, estávamos a desvelar uma face do nosso eu que estava encoberta pela camada científico-opressora da deficiência. Uma página em branco nos torna responsáveis por tudo, desde sempre, por todos e todas, indistintamente. Assim, entregarmo-nos a esta pesquisa, em verdade, fora entregarmo-nos a um salto para o desconhecido, pois, como dito, a cada descoberta, reinventávamos nossa condição de percepção do mundo. Cada entrevista, cada artigo e cada livro escutado era jeito de deixar esse outro e essa outra virem, e só depois, reconhecidamente habitados por eles e elas, nos colocávamos no mundo. O mundo desta pesquisa foi assim, o mundo da invenção, de humanos dançantes, ora, as palavras que escrevem estas páginas que seguem, são páginas conduzidas pela canção do Dudu, pela desarmonia dentro da qual a diferença não queda esquecida pelo acorde da verdade sobre o qual se sustenta uma ideia de ciência. Não há ciência que não seja ciência do outro e da outra. A repetição no texto é insistente por conta mesmo da novidade que cada palavra que escorrega aqui traz, assim como cada encontro como Dudu nos permite.

Não seria possível uma pesquisa assim se não reconhecêssemos que essa alteridade down seria a alteridade por excelência, pois, ao mesmo tempo em que nos transporta para seu mundo infinito de doação, nos responsabiliza instaurando-nos enquanto seres no mundo. Nesses termos, Lévinas, ao propor que a ética deveria estar anterior à ontologia, ou seja, que a ética antecederia o ser e que a existência do humano se daria em vias de sua responsabilidade pela face do outro e da outra, podemos afirmar que esta pesquisa tem um só tempo, o do outro e da outra, e que as faces da ética da alteridade estão sempre evidentes quando em contato com uma pessoa com down. Dudu, portanto, nos ensina mais do que a folha nunca é uma folha em branco, mostra-nos que enquanto buscamos uma ideia de verdade, de razão, ou quando sustentamos argumentos para dizer da diferença, estamos já impedindo qualquer ideia mesma de ética e de inserção. O outro e a outra vem com todas as suas mazelas, benesses, lembranças e esquecimentos, mal e bem, e isso nos mostra o quanto a própria construção social é maniqueísta e opressora, o padrão daquilo que pode ou não ser escrito, daquilo que é ou não ouvido, da forma que é ou não aceita, só importa a quem está fora da dança e não quer ouvi-la. Dudu com sua música é um convite intenso e constante, uma espécie de porta que se mantém sempre aberta, mas que não garante um ponto de chegada. E exatamente por não existir essa chegada esperada, esse leito arrumado, é que podemos afirmar com tranquilidade que nossa pesquisa é uma invenção. Ora, da invenção, não sabemos o que esperar. Assim como a inediticidade que marca as pessoas com down também não entregam itinerário.
A estrada pela qual a pesquisa se conduziu foi a estrada da invenção. Professores e alunos, oriundos da academia, foram chamados a dançar com o Dudu do Cavaco, que, ademais, não está na universidade, pois é ele mesmo a aula. Uma sala de aula com as portas abertas, musicalmente abertas. Quando anunciamos que não haveria folha em branco quisemos dizer que por detrás dela há toda uma miríade de hipóteses outras à espera da chegada. Da mesma maneira, cada ciência que tocou esse tema, pedagogia, fisioterapia, direito e psicologia, foi invadida por aquilo que vem tornando outro aquela caminho. Agora podemos dizer que há uma pedagogia-down, um direito-down, uma fisioterapia-down, uma psicologia-down, porém, não daquela maneira usual que a ciência costuma tratar seus temas. De agora em diante, cada vez que cada um de nós olhar para o tema que trabalhamos, iremos escutar um acorde que fará com percebamos que as folhas em branco não existem e que cada vez que nos laçamos a ela, todas as dimensões outras estarão ali a nos acompanhar, feito herança, feito inspiração, porém, acima de tudo, feito uma existência que nos conduz a uma experiência que antes dela, sequer poderíamos supor. Dudu reinventou a ciência com seus acordes. Todas as folha em branco estão à espera de um ouvido. Saibamos ouvir, senão não há dança, inclusão, pedagogias múltiplas, sublimação e, tampouco movimentos que inventam.
Por força mesmo de uma ideia de hospitalidade, uma ciência que dance é uma ciência do outro e da outra, a dança é sempre um ato conjunto, pedagogia é andar junto do outro e da outra, não pode ser imposição de ou a. Da mesma forma, a sublimação pela arte é um encontro com todo o outro e toda a outra, assim como, só se garante o direito do outro e da outra. Junto desse caldo que resta do que o Dudu fez da nossa pesquisa, seu irmão, Leonardo Gontijo, mostra que a partir do Dudu, nunca mais houve, sequer, um dia em branco, quiçá, uma folha.

NÃO EXISTEM DIAS BRANCOS
Folheando o livro da vida, compreendi que todas as fores criadas são formosas, que o esplendor da rosa e a brancura do lírio não eliminam a fragrância da violetinha nem a encantadora simplicidade da margarida… Fiquei entendendo que se todas as pequenas fores quisessem ser rosas, perderia a natureza sua gala primaveril, já não ficariam os jardins esmaltados de florinhas”
Teresa de Lisieux, Religiosa Francesa

É muito importante rever coisas na vida. Olhar para trás e observar o que mudou, o que ficou igual, o que melhorou. Se os rumos que tomamos foram os certos, se decisões tomadas tiveram os resultados esperados. Rever foi o que fiz quando me propus a escrever este texto. Rever a vida, meus conceitos e meus sonhos.
Antes de conhecer o Dudu, eu pensava, como muitos, que a deficiência era uma fisionomia marcada. A sociedade, de modo geral, nos impõe algumas regras e alguns mitos que trazemos desde a infância até a vida adulta. Um desses mitos é ter pena de pessoas tidas como diferentes, pessoas que têm algum tipo de limitação. O tempo me ensinou e desmistificou o que me foi imposto, inclusive pela escola, que deveria ensinar justamente o contrário. Percebi que o Eduardo é uma pessoa privilegiada e quem tinha várias limitações era eu. Que ser humano dito como normal pela sociedade consegue expressar seus sentimentos de forma tão pura e clara como já vi inúmeras vezes ele fazer?

Tantas vezes esbarrei em pessoas normais infelizes e amarguradas. Dudu ama a vida e as pessoas, distribui alegria sem medo de acabar. Vê encanto na simplicidade e ensina que a mente tem o passo mais ligeiro, mas o coração vai mais longe. Penso que ele é super feliz a seu modo. Ele me ensina que o importante é o presente, que tem duração de um instante que passa, que é preciso viver cada momento com intensidade máxima e sonhar sem perder os minutos presentes.

Sempre sou questionado – e acredito que meus pais também – sobre o que faz do Eduardo uma pessoa tão sociável. Haveria graus na síndrome de down? Seria o nível de estimulação? Seria a aceitação da família?

Hoje penso, sem me embasar na ciência, que um conjunto de fatores influência o desenvolvimento da pessoa com down: estimulação, aceitação, características hereditárias, dedicação, estabilidade emocional dos pais. Acho que é um pouco de tudo e, principalmente, acreditar que a diferença está no olhar de quem vê. Não há vários níveis graduais de síndrome de down. Existem sim diferenças em virtude das capacidades intelectuais, como as pessoas ditas “normais”.

Vivemos em uma sociedade em que se é treinando para não expor a vida íntima a estranhos, embora, com o advento das redes sociais, estejamos passando por uma mudança. Evitamos falar dos problemas e das dificuldades mais profundas como se nos mostrar humanos e verdadeiros nos diminuísse. Preferimos parecer contidos deuses perfeitos aos olhos alheios. E o Dudu nos ensina a leveza da transparência, a beleza da sinceridade e a lindeza da autenticidade. Só crescemos quando nos mostramos por dentro, sem máscaras, sem firulas, com menos roupa. Ele nos ensina sem saber. Sei que é difícil para todos aceitarmos o que é diferente, o que foge do padrão. Abençoados os que não têm preconceito, pois nos ajudam a respirar.

Sou consciente hoje de que ter um irmão com down é uma bênção para mim. E hoje nem poderia imaginar minha existência sem esse tesouro, esse professor da vida. Possível, para ele, é conseguir o máximo dentro da realidade de cada momento. E isso ele sabe fazer como ninguém. Penso que, na profundeza da alma, onde moram os mais estranhos e sinceros desejos, o ser humano sonha ser livre para escolher seu caminho, mesmo que errado, e para falar o que sente, mesmo se não agradar. Sei que a total liberdade é utopia. O mundo tem leis, regras sociais e valores éticos. Para uma boa convivência, temos que respeitá-los. Pagamos também um preço por isso, por reprimir nossos instintos. O segredo é aprender a viver em grupo, sem vender a alma. E isso o Dudu faz muito bem.
É do próprio contato com o outro, principalmente com os diferentes, que aprendermos a nos conhecer. Que ele possa continuar espalhando alegria e cativando cada vez mais as pessoas. Aprendemos muito com ele, especialmente em relação à formação humana, o que nos torna melhores e mais preparados para a vida. Ele nos ensina a nos contentar com pequenas coisas e pequenos momentos.

Ao escrever este texto, pensei na riqueza do viver e em quantas opções existem. Pensei nos sonhos, na necessidade tão simples e primordial de projetar, de antever a vida de forma sensível, feita de desejo e imaginação. Vez por outra, penso no futuro do Dudu. Na ausência de nossos pais. Isso apenas me faz ter a certeza de que ele sempre terá companhia. A caminhada seguirá desconhecida. Com esperança e otimismo enfrentaremos os obstáculos e comemoraremos muitas vitórias juntos.

É fácil amar o perfeito, o belo, o correto. É fácil conviver com a normalidade, conhecida e previsível. Difícil é gostar do desconhecido, do fora do padrão, do imperfeito. Mas quando se chega a este amor pleno, percebe-se o privilégio de conquistá-lo. Então, a alma fica repleta de ternura, de bem querer. É uma sensação tão boa que há muito não posso imaginar minha vida sem ela! A simplicidade, a calma, o otimismo, a alegria, o amor que deseja ao outro toda a felicidade, do fundo do ser; a paciência, o altruísmo e a esperança. Tudo isso aprendi com o Dudu, um irmão que me dá tanto sem nunca me pedir nada, uma pessoa que atua como um guia contínuo, em direção o ao mais alto nível do consciente que um ser humano é capaz de atingir. Tenho certeza de que, ao final desta jornada, sou e serei uma pessoa melhor. Não melhor do que ninguém e sim melhor do que eu era e melhor do que eu mesmo seria se não tivesse um irmão como ele, esse Jovem encantador que emociona e me faz sentir mais humano. A ele devo a ascensão da alma e a sensação de plenitude. A ele devo a luz que hoje tenho no meu caminho. A ele devo todo o amor e gratidão. Ele é capaz de entender muito bem as coisas com naturalidade. Não é necessário um linguajar especial nem atitudes e comportamentos diferentes para lidar com ele. É receptivo na aproximação, interage melhor conosco do que nós com ele, pois é ele que inicia o contato. Basta responder e trocar o mais natural possível. É preciso reconhecer que nos foi dada uma grande oportunidade em nossa vida: a de provar que o ser humano é bastante misterioso para nos surpreender diariamente e superar as nossas mais firmes expectativas. Penso que o verdadeiro obstáculo que temos que vencer não é a pessoa ou a síndrome, mas, precisamente, o enorme preconceito que a envolve. Para o Dudu, a amizade não tem distinção. Ele ama igualmente, pois seu amor é incondicional. Por mais que um ser tente alcançar um grau de pureza, nunca conseguirá ser como ele, que é feliz como é. Somos limitados por não entendermos isso. O amor fala mais alto e ele surpreende mais do que corresponde.
Penso que é preciso aceitar as diferenças e acreditar em nosso potencial que é ilimitado. O fundamental é que olhemos para as pessoas com deficiência preocupados com suas potencialidades e não com os seus defeitos.

Torço para que o Dudu voe alto, sonhe muito. Estarei sempre observando-o e aprendendo que quem possui limite são os municípios. Como diz o filósofo Jean Cocteau: “E sem saber que era impossível, ele foi lá e fez”. A ciência já demonstrou que as etnias humanas são muito mais semelhantes entre si do que aparentam ser porque grande parte da variação que nós vemos entre as mesmas são resultantes de diferenças culturais. Por isso, não podemos, apressadamente, concluir que uma diferença que percebemos na aparência ou jeito de uma pessoa deve-se à diferença na sua constituição genética. Se a diversidade é a regra, por que temos tanta dificuldade em aceitar a diferença?

E penso que aceitar significa ver as pessoas como seres humanos, com sua própria personalidade, limites e desafios. Cresci nesta caminhada com o Dudu, sou mais tolerante e com um grau de compreensão maior em relação às diferenças. As batalhas que vencemos são fruto de muito amor e cumplicidade. A luz que emana do meu irmão é a mais intensa bênção de nossa família, iluminando a vida de todos, com seus olhos puxados e brilhantes, com seu sorriso sincero e abraço afetuoso. A inclusão só vai acontecer se acontecer também em nossos corações, com real vontade de inserir as pessoas com deficiência em nossas vidas, na família, na sociedade. E essa inclusão significa ajudá-los a conquistar a sua cidadania, ensinando-os a cumprir deveres como qualquer cidadão. Somente os governos, a escola, as leis e os profissionais não fazem o milagre da inclusão. Ela só vai acontecer quando aceitarmos as pessoas com deficiência como ele é e não como queríamos que fosse, sem cobranças, sem criticas, sem fugir à realidade. Não podemos exigir direitos sem cumprir deveres. A anormalidade é um desafio para todos nós que queremos aceitar e compreender tudo o que envolve a vida e as dificuldades de uma pessoa com deficiência. Compreender é muito mais que aceitar. É acreditar que todo ser humano é limitado, independentemente de ser deficiente ou não, e que todos temos um potencial a ser descoberto. Em uma sociedade competitiva e preconceituosa como a nossa, essa é uma tarefa, no mínimo, difícil. Se, atualmente, falamos muito em inclusão social, não a colocamos em ação porque a verdadeira inclusão acontece no momento em que deixamos a teoria de lado e partimos para a prática, deixando os preconceitos de lado e dando oportunidade para que as pessoas com deficiência mostrem sua eficiência. Uma das questões mais complicadas do homem é entender e aceitar o outro como ele é, pois criamos um modelo de ser humano imposto pela sociedade moderna. Como as pessoas com deficiência não seguem esse padrão, muitas vezes ficam sem a convivência social. Para se conhecer verdadeiramente a capacidade de uma pessoa apenas dê a ele uma oportunidade. É triste, ao final desta jornada, constatar que o maior bloqueio ao progresso e inserção das pessoas com deficiência não é o imposto pela genética, mas sim por nós mesmos. Se não permitirmos esta convivência e inclusão, como podemos aprimorar nossa sociedade?

Há quem diga que, num futuro talvez até próximo, a engenharia genética desenvolva-se ao ponto de eliminar a trissomia do cromossomo 21. Porém, não devemos aguardar a ciência para superarmos a nós mesmos e aceitar a conviver com a diferença. Nossos irmãos estão aí. Diferentes sim. Capazes também. Temos que ser os primeiros a acreditar neles. Sem falsas ilusões, inseri-los no contexto de acordo com o seu potencial. Descobrir isso junto com eles é o nosso desafio. Sem pena, ressentimentos ou frustrações. Apenas enxergando suas qualidades e aptidões.
Temos que acabar com os rótulos e começar a enxergar o potencial de cada ser humano, procurando atendê-los de acordo com suas dificuldades, sempre criando possibilidades para o pleno desenvolvimento, dentro da capacidade, possibilidade e vontade de cada um. Como educadores, não devemos nos conformar em avaliar habilidades, destrezas, conhecimentos que o ser humano tem ou não tem ou em que medida os tem. Precisamos nos fixar na evolução do processo e não apenas no resultado final. Quanta evolução o Dudu já nos mostrou! Embora atualmente alguns aspectos da síndrome de down sejam mais conhecidos, e a pessoa com down tenha melhores chances de vida e desenvolvimento, uma das maiores barreiras para a inclusão social destes indivíduos continua sendo o preconceito.
No entanto, embora o perfil da pessoa com síndrome de down fuja aos padrões estabelecidos pela cultura atual – que valoriza sobretudo os padrões estéticos e a produtividade -, cada vez mais a sociedade está se conscientizando de como é importante valorizar a diversidade humana e de como é fundamental oferecer equiparação de oportunidades para que as pessoas com deficiência exerçam o direito de conviver na sua comunidade. Cada vez mais, as escolas do ensino regular e as indústrias preparadas para receber as pessoas com deficiência têm relatado experiências muito bem sucedidas de inclusão benéficas para todos os envolvidos.

Colocar-se no lugar do outro é uma postura que pode nos possibilitar posicionamentos mais éticos e de respeito, modificando preconceitos e injustiças, pois sempre que pensamos como nos sentiríamos se estivéssemos no lugar do outro modificamos modos de pensar e agir. Preconceitos, geralmente, são produtos de nossa ignorância, resultado de nossa postura de pensar a realidade a partir daquilo que conhecemos e vivenciamos, sem pensar em outros aspectos, sem avaliar o que os outros podem sentir. Que possamos, portanto, evoluir e compreender essa realidade que o Dudu tanto nos ensina: Todos somos diferentes, mas devemos ter oportunidades iguais. Como nos ensina o filme “Do luto à luta”: quando os bebês começam a andar, nós os chamamos para caminhar. Ter um parente ou amigo com deficiência é um chamado para nos conhecer melhor e nos aprimorar como ser humano. Sabemos que nem todas as pessoas têm obrigação de aceitar as pessoas com deficiência, mas respeitá-los é o mínimo que se espera.
Digo que o meu irmão me trouxe para uma nova realidade. Deu à minha vida um sentido especial. Com ele consegui ver o mundo com um olhar mais humano. Dudu me permite evoluir, pois me faz questionar sobre nosso papel no mundo. As oportunidades são dadas. Cabe a nós aproveitá-las. Para mim não é possível viver são sem um sentido para a vida. Isso é deixa-lá passar em branco. Dudu foi a maior oportunidade eu tive para desenvolver e reconhecer as minhas próprias forças e fraquezas.
Acredito que meus pais se preocupam que o Dudu possa se transformar, futuramente, em um peso para os seus irmãos. Gostaria que soubessem que, por mim, será o peso de uma pluma, com a leveza de um ser humano inigualável. Será um prazer conviver com ele. Como acompanhei toda a trajetória de vida do meu irmão, sei de alguns de seus sofrimentos, de suas dificuldades e de suas superações e lutas. Fizemos o que todos deveriam ter feito. Nada mais, nada menos do que dar amor, essa palavrinha mágica que só funciona se for de verdade. Amor não se finge não se acha, nem se compra. Simplesmente se ama ou não.

Gostaria de expressar que ter um irmão diferente, para alguns, pode ser um grande trauma. Obviamente nos causa muitas perguntas, principalmente sobre nossos valores e sentido da vida. Por ter esta oportunidade, agradeço imensamente, primeiramente aos meus pais e especialmente ao Eduardo. Obrigado sempre. Com esta iniciativa do texto gostaria de ressaltar o exemplo do Dudu. Convoco todos a entrar em seu mundo e ver que, além de sua aparência tão marcada pela síndrome, estão seus medos, seus conflitos, seus desejos, e quem sabe, possamos ver o que talvez não esperávamos: que seus sentimentos são tão semelhantes aos nossos. Quem sabe agora, após contar esta história, quando encontrarmos pessoas com deficiência na rua possamos fixar nosso olhar não na síndrome que o faz ser diferente, mas nos empenhemos em nos questionar: quem está aí? Ninguém é igual a ninguém. Por isso, somos autênticos e únicos. Dudu me ensinou o mais importante na vida: nunca deixar de demonstrar nossos sentimentos aos que amamos. Foi esse ensinamento que tentei demonstrar neste texto.

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